Yuval Noah Harari e Neil Lindsay falam sobre narrativa, sociedade e marketing

14 de julho de 2021

Quando perguntaram a Neil Lindsay, vice-presidente de marketing da Amazon, com quem ele gostaria de dividir o palco no festival de Cannes Lions, ele imediatamente pensou em Yuval Noah Harari, autor do icônico livro Sapiens: uma breve história da humanidade.

“Adorei ler Sapiens quando o livro foi lançado em 2011, cerca de um ano após que eu ter entrado na Amazon,” conta Lindsay. “A percepção mais marcante que retirei da leitura de Sapiens foi a importância da narrativa no nosso sucesso como seres humanos, como espécie, e no sucesso e sobrevivência das sociedades. Me ocorreu então que existem alguns paralelos bastante interessantes entre a evolução e o sucesso das sociedades, e a evolução e o sucesso das marcas.”

No Festival Internacional de Criatividade de Cannes Lions de 2021, Harari juntou-se a Lindsay para explorar essa ideia em um bate-papo à beira da lareira “De Sapiens à Amazon: como a narrativa molda a sociedade e o marketing.”

Yuval Noah Harari, autor do icônico livro Sapiens: uma breve história da humanidade e Neil Lindsay, vice-presidente de marketing da Amazon.

“As nações são marcas. E, na verdade, as religiões são marcas. Os deuses são marcas. E o dinheiro é uma marca,” afirma Harari. “Portanto, todas as grandes estruturas da sociedade humana ao longo da história são marcas. Os paralelos estão aí, sem sombra de dúvidas.”

Veja alguns dos principais insights de Harari e Lindsay na sessão.

Neil Lindsay: Em Sapiens, você credita nosso sucesso como homo sapiens, em comparação com os neandertais e até outros animais, à nossa capacidade de nos organizarmos em grupos e trabalhar em conjunto, apesar da nossa relativa fragilidade. Grande parte do sucesso veio da nossa capacidade de nos organizarmos por meio da linguagem e da narrativa. Pode falar mais sobre essa ideia?

Yuval Noah Harari: Quando você olha para um único homo sapiens, como eu ou você, não somos mais fortes ou mais capazes do que um neandertal ou um chimpanzé, ou mesmo um porco ou um elefante. Se você lutar sozinho com um porco ou um lobo, é provável que eles vençam. O que realmente nos torna especiais é nossa capacidade única e notável de cooperar com flexibilidade em meio a vários indivíduos. Os chimpanzés não conseguem cooperar em um grupo com, digamos, mais de cem indivíduos. Os neandertais também nunca cooperaram em grande número. Eles só cooperavam com outros neandertais que conheciam pessoalmente.

Nós, homo sapiens, podemos cooperar, não apenas com milhares de estranhos, mas, atualmente, com bilhões de estranhos. Se você pensar em nações como os EUA ou a China, ou sobre a rede de comércio global, este é um sistema de cooperação entre centenas de milhões de pessoas que nunca se conheceram. Elas não se conhecem pessoalmente e, ainda assim, podem cooperar para produzir uma camiseta ou para realizar conferências via internet. E, se tentar entender de onde vem essa capacidade de cooperar em grande número, você chega à narrativa já que ela é a base de toda a cooperação humana em larga escala.

Quais histórias estão na base do sucesso da Amazon?

Neil Lindsay: Uma das grandes ideias iniciais da Amazon era que todo dia é sempre o “Primeiro dia” e isso torna a história fascinante. Ela inspira as equipes a se levantarem todos os dias e inventarem em nome dos clientes, e [acreditarem] que haverá oportunidades infinitas para fazer isso.

Deixe-me perguntar, na sua opinião, o que torna uma história fascinante?

Yuval Noah Harari: O que torna uma história fascinante? Isso é algo que profetas e imperadores vêm tentando descobrir há milhares de anos e, muitas vezes, é algo inesperado.

Na competição entre histórias, não é necessariamente a história mais verdadeira que ganha. A verdade é muitas vezes dolorosa. As pessoas realmente não querem ouvir a verdade sobre si mesmas ou sobre sua tribo ou sua nação. Além disso, a verdade tende a ser muito complicada. Como vimos ano passado com a crise da COVID, é complicado entender o que é um vírus e como uma epidemia funciona. É muito mais fácil acreditar em teorias da conspiração. Portanto, uma coisa lamentável sobre a história humana são as desvantagens da verdade. Você precisa fazer um esforço enorme para permanecer leal à verdade, à realidade, enquanto cria suas histórias.

Como você acha que as marcas devem lidar com essa tensão entre querer se promover e sua história e ainda permanecerem leais ao valor básico da verdade e da confiança?

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– Yuval Noah Harari, autor do icônico livro Sapiens: uma breve história da humanidade

Neil Lindsay: As marcas mais interessantes contam histórias que amplificam a verdade sobre como superar obstáculos reais em prol de algo que vale a pena. Além disso, as melhores histórias, a meu ver, são aquelas que você não quer deixar de lado porque as metas e os desafios ficam cada vez maiores com o passar do tempo. Acho que isso é realmente verdade para nós na Amazon, onde temos várias grandes ideias.

O Prime foi, e ainda é, uma grande ideia. O programa Climate Pledge, onde nos comprometemos a alcançar a neutralidade carbônica até 2040 e incentivar várias outras empresas a se juntarem a nós. São coisas difíceis. São coisas desafiadoras.

Os obstáculos são enormes. E isso requer muita invenção e coragem e, francamente, muito risco. Portanto, ir atrás de grandes ideias, cumprir a promessa dessas ideias e contar essas histórias de forma eficaz é tudo que precisamos para criar uma marca. Sendo assim, você tem que se levantar todos os dias e repetir isso inúmeras vezes e, francamente, esse processo é realmente parte do que torna uma história fascinante.

Como você acha que a pandemia afetou as histórias que contamos uns aos outros e como evoluímos como sociedade?

Yuval Noah Harari: Ainda não sabemos qual será o impacto final da pandemia de COVID-19 em termos de arte e narrativa. Isso nos fez perceber muitas coisas novas sobre nós mesmos, que as pessoas, por exemplo, valorizam a conexão, a conexão física. Elas de repente perceberam o quão vital isso é.

Acho que cabe a nós decidir o que queremos que a história se torne. Por um lado, a pandemia pode aumentar as tensões, o ódio e as ilusões no mundo. Se culparmos os estrangeiros e as minorias pela pandemia, e criarmos todas essas teorias da conspiração e as espalharmos, o resultado será mais ódio e mais ignorância.

Por outro lado, podemos optar por propagar outras histórias. Podemos optar por nos concentrarmos na necessidade de cooperação global. Podemos optar por nos concentrarmos na generosidade, na necessidade de ajudar todos os membros da raça humana para que ninguém fique para trás nesse momento de crise. E podemos optar por nos concentrarmos no valor da verdade e da ciência, e confiar nisso. Essa é a decisão que as corporações precisam tomar, e também os produtores de TV, os políticos e as pessoas.

Onde você acha que a narrativa da Amazon, ou as narrativas em geral, nos leva com as novas situações que a COVID criou?

Neil Lindsay: A pandemia forçou uma distância que mudou nossa forma de colaborar e criar. Mas, de certa forma, também forçou uma simplicidade na narrativa. Especialmente na publicidade, a experiência compartilhada de medo e decepção, e a incerteza sobre quando isso acabaria, expôs algumas verdades universais, como coragem e determinação, e o que é preciso para manter nossa cabeça erguida por nós mesmos e pelos outros. Acho que isso gerou criatividade e algumas histórias inspiradoras. Também, de certa forma, promoveu mais foco em uma ordem superior de ideias e mais sentimento. Sinto que há alguns aspectos positivos na maneira como estamos contando histórias que surgiram dessa experiência tão difícil.

Quando você pensa nas histórias de maior sucesso nas sociedades ou marcas, o que vem à mente? Por que você acha que elas tiveram tanto sucesso?

Yuval Noah Harari: A história mais bem-sucedida já contada é definitivamente a história do dinheiro já que é a única história em que todos, quase sem exceção, acreditam.

Se você pensar em algo como o dólar americano, é apenas uma história. Você não pode comê-lo. Você não pode bebê-lo. Seu valor é apenas imaginário. O incrível é que quase todo mundo acredita nisso, não apenas os americanos ou os israelenses. Esta é realmente a história de maior sucesso já contada. E isso cria confiança entre todos aqueles que usam a moeda.

No entanto, é algo que poderia se perder num instante. Você poderia ir a uma loja e a pessoa se recusar a aceitar seus dólares. E você iria a outra loja e a pessoa também se recusaria a aceitar seus dólares já que eles não valem nada. Tudo aquilo que você acumulou em sua conta bancária ou debaixo do colchão não vale nada.

Coisas assim aconteceram na história de tempos em tempos. Portanto, entender como você cria confiança em algo assim, já é outra história, certo?

Neil Lindsay: É muito interessante pensar no dinheiro como uma marca e que todas as instituições são marcas em um certo sentido. E, de alguma forma, ficção. Dinheiro e marcas de sucesso dependem claramente da confiança e o sistema precisa ser honesto ou, como você disse, as moedas provavelmente se perderão.

Você tem alguma colocação final para os profissionais de marketing em relação aos paralelos sobre os quais falamos aqui, entre o que você aprendeu sobre a evolução humana e das sociedades, e a criação de marcas?

Yuval Noah Harari: O mais importante é lembrar que, em última análise, as marcas são apenas histórias que existem na nossa imaginação. Nós as criamos para ajudar as pessoas. As marcas não podem sofrer e não podem ser felizes porque não têm consciência disso. Elas não sentem nada.

Os humanos podem sofrer e podem ser felizes. Portanto, sim, você deve ajudar sua marca e sua profissão. Esse é o seu trabalho. No entanto, em última análise, lembre-se que são os humanos que são felizes e não apenas a marca.